sexta-feira, 8 de maio de 2009

Às vezes você

Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde.*

Estamos sentados a uma distância de mais ou menos 5 metros. Tem muita gente entre nós. Eu a reconheço pela camisa. Ela adora esta camisa. Essa camisa que só se vê ela. Mas ela também não se importa muito com modas e estilos. Raramente se importa com o que vestir. Só quando realmente precisa. Já sapatos... tem um para cada dia.

Mas seria tão indelicado referir-me a seus sapatos de pano como uma imperfeição...*

Os sapatos normalmente são impecáveis. Não há como não reparar. E ela os usa porque sabe que todos reparam.

Não, você não sabe, você não sabe como tentei me interessar pelo desinteressantíssimo.*

Acho que, mesmo não pensando em estilo, ela consegue impor um estilo bem característico. E foi isso que me fez olhar pra ela com interesse. E é engraçada essa falta de vaidade. Porque ela não precisa de nada disso para ser assim..tão bela.

...sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara*

Só tem uma coisa que ela não dispensa: o perfume. E como eu gosto daquele perfume. Só dela. Só nela tem aquele cheiro. É um cheiro comestível. Sim, eu já disse isso milhões de vezes. Porque gosto quando usa ele para mim...Para os outros, me deixa com ciúmes.

Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos meus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto...*

Não lembro de conhecer outra pessoa que use o mesmo perfume- e ela o usa há anos. E jura que não usa quando perguntam. Diz que é o amaciante da roupa ou o sabonete. Acho que pelo jeitão dela, as pessoas acabam acreditando. Ninguém diria que ela passa perfume antes de sair de casa.
E gosto das tuas histórias. E gosto da tua pessoa. Dá um certo trabalho decodificar todas as emoções contraditórias, confusas, somá-las, diminuí-las e tirar essa síntese numa palavra só, esta: gosto.*

Pois é... ela tem suas extravagâncias. Falas nas entrelinhas, deixando eu muitas vezes no ar. Mas isso me estimula. Me faz pensar. Me faz tentar decifra-lá, mas a maioria das vezes as minhas conclusões são as erradas...

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.*

São esquisitices que a tornam única. Principalmente porque quase ninguém sabe dessas particularidades. Ela não é arrogante, nem gosta de se exibir. E eu, olhando pra ela, agora com o rosto grudado no vidro, e com a essa chuva lá fora...

...só olhando você, sem dizer nada só olhando e pensando: Meu Deus, mas como você me dói de vez em quando!*

Na verdade, ela prefere ser exatamente este garota que eu vejo discretamente levantar agora. Mais uma na multidão. Mais uma no meio de tanta gente. Invisível aos olhos de tantos. Totalmente destacado aos meus. Me enxerga e já abre aquele sorriso que eu amo. Só que eu estou à frente e tenho que descer antes. Espero. Ela desce. Rimos. Então ela me diz:

- Abraça a sua loucura antes que seja tarde demais.*
- Minha loucura, por acaso, seria tu?


* trechos do caio fernando abreu.